Ele surfava no dorso daquele pássaro, num vôo suave e malabarístico. Um desenho de traços infantis, em preto e branco, em linhas, curvas e movimento. No meu sono profundo, sou mera espectadora deste balé aéreo. Admiro a sincronia entre homem e pássaro.
Desperto ainda no ar, uma sensação de leveza no corpo. Sem abrir os olhos, a lembrança da noite passada se funde ao sonho. Penso nele em movimento, em linhas e curvas. Agora não sou só uma mera espectadora, mas o pássaro deste balé cheio de harmonia e desejo.
Éramos corpos sem identidade, num vôo único ao sabor do vento. O sopro de sua boca na minha orelha e a mistura do batucar dos corações em delírio ditava um saboroso ritmo.
Nenhuma palavra.
Vou me dar mais alguns segundos para sair deste estado letárgico e voltar a me misturar na rotina de nomes, funções e vozes. Meus lábios se abrem primeiro em um discreto sorriso. Meu olhar vai ser diferente.
Pareço flutuar entre o chão e a realidade. Meus sentidos estão límpidos. A consciência sem nuvens. Dentro de mim ainda restam fluidos e espasmos. Eternizo o quanto posso aquela emoção.
Minha mente se aquece naquele vôo silente. Um presente da vida, guardado no segredo da minha história. Posso esquecer seu rosto. Nem sei o tom de sua voz. Impossível tirar o seu sabor de minha boca ou seu perfume de minha pele.
Para que palavras?
de cecilia cavalcanti - 2006